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BEM COMUM E OS DIREITOS DA NATUREZA

“A nossa perspectiva é a das pessoas comuns do planeta: seres humanos com corpos, necessidades, desejos, cuja tradição mais essencial é a cooperação na elaboração e manutenção da vida; e ainda tiveram que fazê-lo em condições de sofrimento e separação uns dos outros, da natureza e do patrimônio coletivo que criamos ao longo de gerações.” 1 Six Billion Commoners

Os princípios do commons (ou bem comum, na tradução escolhida) orientam a solidariedade nas interações entre ser humano, sociedade e natureza. O fundamento do que é comum é, assim, a solidariedade 2 . A humanidade vive caminhos individuais em cada ente da espécie e têm em comum diversos laços e vínculos capazes de propiciar solidariedade às relações e interações sociais.

O processo globalizador de fortalecimento das dependências socioambientais transforma o planeta em uma área conhecida e remasterizada, diminuta. O crunch 3 global advindo dos grandes poderes de conexão da comunicação contemporânea, onde idealmente todos podem ter acesso à todos os outros elementos do sistema, recria a espécie quanto à códigos informacionais, éticos e morais capazes de transformar o mundo, física e ambientalmente.

Hardt e Negri 4 fortalecem as perspectivas da multidão, em contraposição às figuras de povos e massas, na construção do que chamam de altermodernidade. Nos alertam quanto ao nível ético de nossas ações com o atual “abandono total dos sonhos de pureza política e ‘altos valores’ que nos permitiriam permanecer fora” das cadeias de poder e contaminações da corrupção.

O auge destes processos globalizados se dão a partir da década de 50 nas construções de equilíbrio político e econômico do pós II Grande Guerra, intensificando o porte das ações de âmbito humanitário sobre os fracos pilares de uma democracia global nascitura.

Não talvez sem refletir robusta e merecidamente suas conexões, é a partir também da década de 50 que os geólogos do mundo inauguram o Antropoceno, uma nova Era Geológica onde a humanidade impacta intensivamente a dinâmica geológica da esfera terrestre. A nova era geológica merece a caminhada além do que existia entre o público e o privado. Diversas são as leituras do comum que produzem a sucessão de eventos sociais interdependentes em todo o planeta, onde ele é permitido ainda hoje como era em tempos de 1215 onde se estabelecem os primeiros registros de uma Magnae Chartae, as Cartas Magnas que regem nossa convivência em sociedades.

Tradicionalmente as atuais formas solidárias de convivência são orientadas para o universo infantil e relegadas ao mundo da irrealidade na ascensão à vida adulta ou ao mundo do trabalho. A solidariedade é também comum em atos militares de combate à alguma coisa, qualquer coisa, nas mais diversas instâncias das hierarquias militares ou paramilitares, vide o grau de conexão dos serviços legais e ilegais que se sobrepõe no financiamento de ambos os grupos 5 .

Em Hazards, Risks, and Disasters in Society 6 (pág 26) os autores citam Rebecca Solnit e suas pesquisas publicadas em 2009 7 que abordam a intensa solidariedade que emerge nos seres humanos durante períodos de desastres como enchentes, furacões ou terremotos.

Ela destaca uma pergunta importantíssima: “a pergunta verdadeira não é porque este breve paraíso de cuidado mútuo e altruísmo acontece nos desastres mas sim porque ele é normalmente dominado por uma outra ordem mundial”. Em outras palavras, a grande pergunta é porque em tempos de não desastres a solidariedade humana é diminuta. Há a necessidade de novos imperativos e premissas para a compreensão do antropoceno social que vivenciamos hoje. Linebaugh é um historiador que nos simplifica ao criar caminhos históricos de compreensão do commons em suas publicações datadas em 2014, já citadas.

Ele aponta, resumidamente, que a reprodução precede a produção social e a comunização acontece no trabalho com o recurso. É o trabalho em si, social, que torna a coisa um recurso, provendo-lhe valor, tornando-a comum. Sem o trabalho a coisa é o que é, não tem intrinsecamente nenhuma característica de ser recurso e está imersa no todo dinâmico e vivo que é o planeta Terra, podendo ser reconhecida como Pachamama.

O primeiro reconhecimento constitucional da figura de Pachamama fortalece o paradigma onde temos o mínimo de respeito aos Direitos da Natureza em nossas ações cotidianas. Para isso é necessário o reconhecimento dos fundamentos legais da natureza e dos ecossistemas, garantindo o direito da natureza de existir, persistir, prosperar e regenerar em Pachamama.

Atualizada em 2008, a nova Constituição do Equador trata a Natureza como sujeito de direito e foi referendada apresentando uma visão biocêntrica do mundo, em oposição à tradicional visão antropocêntrica. A seguir nossa tradução do Artigo 71º da referida constituição:

“Art. 71.- A Natureza ou Pachamama, onde a vida é reproduzida e existe, tem o direito que se respeite integralmente sua existência, mantendo a si mesma e regenerando em seus próprios ciclos vitais, sua estrutura, funções e seus processos evolutivos. Toda e qualquer pessoa, povoado, comunidade ou nacionalidade poderá exigir da autoridade pública o cumprimento dos direitos da natureza. Para aplicar e interpretar estes direitos se observam os princípios estabelecidos na Constituição, conforme o caso. O Estado incentivará as pessoas naturais e jurídicas, e aos coletivos, para que protejam a natureza e promovam o respeito a todos os elementos que formam um ecossistema.”

Importante destacar que no ano seguinte (2009) a Bolívia também inclui em sua nova constituição abordagens semelhantes, biocêntricas. Na verdade, o Estado boliviano é um dos geradores das primeiras iniciativas acerca da cosmovisão como Política Pública de Estado e atualmente muito ativo na iniciativa das Nações Unidas que visa fortalecer globalmente a cosmovisão biocêntrica.

A iniciativa chama-se Harmony with Nature 8 e recentemente, no mês de novembro de 2016, inaugurou um acordo entre o governo do Estado Plurinacional da Bolívia e o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (UN-DESA) para contribuir com as suas atividades pelo globo.

Todas as mudanças paradigmáticas estão postas e suspeitamos que há fortes indícios que devem ser avaliados nas diversas revisões acerca dos direitos que os avanços sócio-tecnológicos têm imposto às dinâmicas jurisprudenciais do planeta.

As comunidades locais do interior dos Estados Nacionais podem decidir se estão aptas para a realização de novos pactos civilizatórios. Há de sobrepor as dificuldades iniciais de admissão de novos paradigmas, porém é necessária a criação de novos modelos mentais coletivos em busca da felicidade.

Não podemos mais suportar com os métodos tradicionais a incorporação de práticas tecnológicas sociais que substituem o sofrimento das relações de controle e mão de obra humana pela inacessibilidade à bens comuns e seus dispositivos de acesso.

Há possibilidades de construção de soluções localizadas, salvo condutas ultrajantes às constituições. Há princípios para serem analisados, avaliados e questionados quanto a sua resiliência e potencial de resolução de conflitos, garantindo assim a possibilidade de momentos autogestionados na consolidação de tribunas plenas para a constituição de garantia dos direitos da existência de todos os seres viventes ou não viventes.

O commons surge como alternativa para análise de direitos e não se restringe às cercas e propriedades territoriais, ou aos recursos naturais em escassez ou abundância, mas à todas as facetas da humanidade que podem ser, e serão, compartilhadas.

1 The Emergency Exit Collective, The Great Eight Masters and the Six Billion Commoners, Bristol, Dia de Maio 2008
2 Stop, Thief! The Commons, Enclosures, and Resistance. Escrito por Peter Linebaugh, Oakland: PM Press, 2014
3 Franco, Augusto (2013): FLUZZ Série Completa
4 Michael Hardt e Antonio Negri. Multitude: War and Democracy in the Age of Empire, New York:
Penguin, 2004. tradução brasileira: Multidão, Rio de Janeiro,Record,2005
5 No Sapatinho – A evolução das milícias no Rio de Janeiro [2008-2011], Ignacio Cano & Thais Duarte
6 Hazards, Risks, and Disasters in Society editado por Andrew E. Collins,Jones Samantha,Bernard Manyena,Janaka Jayawickrama, Elsevier, 2014
7 Primeiro na forma de ensaios depois publicados no livro A Paradise Built in Hell: The Extraordinary Communities that Arise in Disaster. New York: Penguin. 2010 [2009]. ISBN 9781101459010
8 Para mais informações a arcabouço conceitual e prático visite o website http://www.harmonywithnatureun.org/